Papa Francisco e a urgência de uma política migratória baseada na dignidade humana
- Paulo Illes
- 30 de abr.
- 4 min de leitura
O Papa Francisco se tornou, ao longo dos últimos anos, uma das vozes mais lúcidas e corajosas na defesa dos migrantes e refugiados no cenário global. Num mundo profundamente marcado pela desigualdade, pela militarização das fronteiras e pela criminalização da mobilidade humana, sua liderança espiritual e política nos interpela: migrar é um direito humano e proteger quem migra é um dever coletivo.

Desde sua primeira viagem como Papa à ilha de Lampedusa, em julho de 2013, Francisco denunciou com contundência a "globalização da indiferença". Ao homenagear os migrantes mortos no Mediterrâneo, ele nos chamou à responsabilidade: não podemos nos acostumar com o sofrimento e a morte daqueles que buscam uma vida digna.
Mas seu compromisso com a causa migratória vai muito além de gestos simbólicos. Em sua encíclica Fratelli Tutti (2020), Francisco dedicou um capítulo inteiro ao tema das migrações. Ali, ele propõe um verdadeiro programa de ação: acolher, proteger, promover e integrar migrantes e refugiados. Quatro verbos que sintetizam uma ética da mobilidade humana fundada no respeito à vida humana, na justiça e na fraternidade.
Segundo Francisco, acolher significa abrir as portas das comunidades e dos corações; proteger implica garantir os direitos fundamentais e a segurança dos migrantes; promover exige assegurar oportunidades concretas para o desenvolvimento humano integral; e integrar demanda construir sociedades onde os migrantes sejam protagonistas, e não apenas tolerados.
A encíclica também vai além dos aspectos humanitários. Francisco aponta que a migração forçada é, frequentemente, fruto de um sistema econômico que "não hesita em explorar, descartar e até matar seres humanos". Ele denuncia a ordem global que gera guerras, pobreza, mudanças climáticas e violações de direitos, forçando milhões a abandonar suas terras. A migração, portanto, não pode ser tratada como um fenômeno isolado ou como uma “crise” a ser gerenciada: é o sintoma de uma injustiça estrutural.
Em suas mensagens anuais para o Dia Mundial do Migrante e do Refugiado, Francisco insiste que os migrantes não são apenas vítimas a serem assistidas, mas sujeitos de transformação social. Ele nos convoca a “ampliar nosso nós” — ou seja, a redefinir nossas comunidades políticas e culturais de forma inclusiva, reconhecendo a contribuição das populações migrantes à construção de sociedades mais plurais, resilientes e solidárias.
Nesse sentido, o Papa desafia tanto as lideranças políticas quanto a sociedade civil: a acolhida não pode ser apenas emergencial e assistencialista. Precisa ser institucionalizada, transformada em políticas públicas, leis inclusivas e práticas cotidianas de integração. A dignidade de quem migra não pode depender da boa vontade ou da caridade esporádica; ela exige justiça, participação e reconhecimento.
Francisco também rompe com a lógica securitária que domina o debate migratório atual. Em vez de muros, propõe pontes. Em vez de políticas de contenção, propõe políticas de cuidado. Para ele, a verdadeira segurança nasce da justiça social e da inclusão, não da exclusão e da militarização das fronteiras.

O legado do Papa Francisco para a causa das migrações e do refúgio é, portanto, profundamente político no sentido mais nobre da palavra: ele nos chama a repensar os fundamentos das nossas sociedades. Um mundo fechado em fronteiras, medos e preconceitos é um mundo condenado à violência e à desumanização. Um mundo aberto à fraternidade e à solidariedade é o único caminho para a paz e para a equidade.
Em tempos de endurecimento dos discursos de ódio, criminalização das pessoas em mobilidade e retrocessos nos direitos humanos, a mensagem de Francisco é um farol. Ela nos recorda que não basta acolher migrantes como “outros” em nossas comunidades; é preciso reconhecê-los como irmãos e irmãs, protagonistas de uma história comum que todos somos chamados a construir.
Migrar é um ato de esperança. Defender os migrantes e refugiados é afirmar a vida contra a lógica da morte. O Papa Francisco nos ensina que a defesa da mobilidade humana não é apenas uma escolha ética: é uma escolha de civilização.
Dentro desse espírito, Francisco também nos lembra que a cultura da acolhida é um chamado profundo: receber quem migra não é apenas abrir fronteiras físicas, mas superar barreiras de preconceito, medo e indiferença. Acolher significa reconhecer a presença do outro como uma oportunidade de crescimento coletivo, de renovação das sociedades e de reafirmação dos valores fundamentais da solidariedade humana. A verdadeira hospitalidade exige receber de coração aberto, proteger de maneira ativa, promover o desenvolvimento de cada pessoa migrante e integrar plenamente sua presença na construção do bem comum.
Esses quatro princípios — acolher, proteger, promover e integrar — não podem ser meros slogans em tempos de retrocessos globais e da criminalização da migração. No mundo de hoje, onde milhões são forçados a migrar pela guerra, pela fome e pelas mudanças climáticas, eles precisam se traduzir em políticas públicas concretas, capazes de garantir o respeito à pessoa em todas as suas dimensões. O Papa Francisco nos convoca a romper com lógicas de exclusão e a construir sociedades abertas, justas e solidárias.
O Brasil, com sua história marcada pela diversidade e pela mobilidade humana, tem diante de si uma oportunidade histórica: ao construir uma nova política migratória baseada nesses princípios, pode se tornar um exemplo para o mundo de que acolher é um ato de justiça, proteger é um dever de humanidade, promover é um gesto de esperança e integrar é a base de uma verdadeira fraternidade universal.
Assumir essa missão não é apenas atualizar normas ou criar novos programas; é reafirmar um compromisso profundo com a vida e com a construção de um mundo onde todas as pessoas, sem exceção, tenham o direito de existir, sonhar e viver com dignidade.
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